Uma rebelde no rebanho



*Por Amanda Massuela




Originalmente publicada em: https://revistacult.uol.com.br/home/uma-rebelde-no-rebanho/

Acesso em: 23/03/2017





A filósofa e teóloga Ivone Gebara é uma voz dissonante na Igreja Católica. Aos 72 anos, 50 deles dedicados à vida eclesiástica, ela trabalha para que mulheres deixem de ser exploradas pela religião






Ivone Gebara no jardim suspenso do CCSP, em São Paulo (Foto: Marcus Steinmeyer)





Ivone Gebara está acostumada a incomodar. Incomodou os pais quando se juntou a uma Congregação religiosa aos 22 anos. Incomodou o Vaticano quando se manifestou a favor do aborto em uma revista de circulação nacional e incomoda a Igreja todos os dias, há cinquenta anos, ao questionar as verdades absolutas do catolicismo.

Aos 72 anos, a filósofa da religião e teóloga feminista quer plantar dúvidas na cabeça dos fiéis, especialmente das mulheres. Quer explicar para confundir, quer tirá-las da espiral de dominação masculina que ainda impera em muitas igrejas. “Tento ajudá-las a se ligar de maneira horizontal com a religião. É uma tarefa árdua, mas necessária”, afirma.

Autora de mais de trinta livros publicados – entre eles Teologia ecofeminista: ensaio para repensar o conhecimento e a religião (1997) e Rompendo o silêncio: uma fenomenologia feminista do mal (2000) –, Ivone é doutora em Filosofia pela PUC-SP e em Ciências Religiosas pela Universidade Católica de Lovaine, na Bélgica.

De volta a São Paulo depois de trinta anos morando no Recife, ela usa seus dias para escrever, participar de conferências, palestras e conversas com grupos de periferia. Quando encontrou a reportagem da CULT, estava prestes a embarcar em uma viagem ao México, onde falou sobre a genealogia da violência contra a mulher em um simpósio. “Quem me convida é porque quer me escutar”, diz Ivone, com a consciência de que as tentativas de silenciá-la são maiores que os espaços concedidos de bom grado.

“Seria muito bom se me oferecessem um púlpito em que eu pudesse fazer uma pregação feminista todos os domingos, mas nós temos pouquíssimo espaço público”, afirma. Ivone sabe das ambiguidades de suas escolhas, e vive em constante conflito por isso, mas está certa de que seguiu o caminho mais livre e transgressor possível ao se decidir pela vida religiosa.

CULT – Por que a vida dentro de um convento lhe pareceu mais livre do que fora?

Ivone Gebara – Porque de repente me vi acolhida em minha busca intelectual. Acho que sou marcada por um desejo de conhecimento, de me aproximar de mundos e histórias diferentes, e o convento me abriu para essas possibilidades. Me lembro que queria fazer um curso de especialização em Filosofia na USP, ainda no tempo da rua Maria Antônia, e não me fizeram objeção alguma. O curso era à noite, me deram as chaves e eu me senti como nunca havia me sentido na vida, andando pela rua com um monte de estudantes, conversando depois das aulas. Jamais teria feito isso se vivesse com meus pais.

Algumas das minhas professoras na faculdade de Filosofia – que depois seriam as freiras da minha Congregação – manifestavam uma liberdade de mulher que apareceu antes do feminismo para mim. Eu achava legal como elas se movimentavam no mundo universitário e também no mundo popular, já que mantinham muitos trabalhos nas periferias. Essa aliança entre pensamento e ação me impressionou.

Então entrei na Congregação e de certa forma traí as expectativas da minha família, que esperava que eu me casasse e tivesse filhos. Era um mal-estar que eu estava provocando neles, fugindo à regra dessa maneira. As pessoas se perguntavam como eu podia negar essa razão de ser do feminino, essa naturalidade da mulher. Pode não parecer, mas o caminho que escolhi foi transgressor no passado. E ele me marcou de maneira que todo pensamento que parecia transgredir alguma ordem me atraía. Mas sei que para outras pessoas essa escolha foi escravizante, foi um delírio. Paradoxalmente, eu tive uma experiência diferente.

Quando encontrou o feminismo?

Na década de 1980. Muita coisa aconteceu. Eu nunca tinha prestado atenção na questão de gênero, mas algumas agulhadas me foram dadas. A primeira foi quando me interessei por literatura teológica feminista. Alguns textos me ajudaram a perceber como a figura do pai religioso, o “Deus Pai Todo-Poderoso”, é cúmplice de várias formas de totalitarismo e de opressão sobretudo de marginalizados e de mulheres. Quando li, me assustei, mas senti fome daquela literatura. Como se ela me abrisse para coisas absolutamente impressionantes.

Outra agulhada veio dos movimentos populares. Vivi por mais de trinta anos no Recife, e mensalmente ia até uma cidadezinha chamada Cabo [de Santo Agostinho], onde fazia estudo teológico bíblico com alguns operários na casa de um deles. Sempre me preocupou o fato de nenhuma esposa participar, nem mesmo a dona da casa que servia o cafezinho. Num dia de domingo resolvi visitá-la, e muito timidamente ela me disse que não participava porque eu só falava sobre “assuntos de homem”: sindicato, política, partidos, salário mínimo. “Você sabe que eu trabalho, mas não tenho carteira assinada?”, ela me disse. “Sabe que vendo cheiro-verde e coentro na feira? Sabe o que uma operária sofre com o sexo?”. Eu caí das pernas. Comecei a perceber que eu estava focada em uma problemática geral, e que a problemática geral é masculina.

Outra veio quando feministas de São Paulo me perguntaram como eu trabalhava a questão da sexualidade dentro da Teologia – eu não trabalhava de forma alguma –, e mais tarde, quando decidi fazer psicanálise e, de repente, ao contar a minha história, me descobri também mulher.

O que mudou a partir daí?

O feminismo mudou a minha relação com o mundo da religião. Percebi que o monoteísmo, em especial o cristianismo e particularmente o catolicismo são muito marcados pela figura de Deus Pai, que eles dizem ser “puro espírito”, mas que na verdade é um espírito controlado pelo masculino. Afinal as autoridades que se julgam representantes de Deus e que falam em seu nome são homens. Então esse personagem, Deus, passa a me incomodar, passa a ser o reflexo, a imagem e semelhança do poder masculino que governa o mundo e as consciências, sobretudo as consciências femininas.

Por que “sobretudo” as femininas?

Elas pagam, dão esmola, são exploradas e não percebem, porque é doce essa exploração. Muito me espanta que depois de tantos anos de militância feminista no mundo da religião eu ainda me depare com tamanha sujeição das mulheres a todos esses movimentos de padres cantores, essas curas, religiões de massa. Me entristece porque imaginei que o feminismo religioso, ou a filosofia e a teologia feministas tivessem surtido um pouco mais de efeito. É um tanto frustrante ver como elas se dobram, se apaixonam, imploram ajuda e perdão a essas figuras que também se dizem representantes de Deus.

Basta ligar a TV em qualquer transmissão desses cultos neopentecostais e mesmo católicos para ver que mulheres de meios populares são grande maioria. Elas saem do mundo doméstico cansativo, vão à igreja, cantam, batem palmas, algumas até dançam, e de repente encontram um pastor que diz uma palavra delicada e depois saem tomar um lanche. As igrejas aparecem como uma espécie de consolo, e elas pedem tanta coisa: pelos filhos, por elas mesmas, todas sonham com algum milagre. Há também uma função catártica da religião e não podemos desprezar o fato de que o capitalismo e a corrupção na forma atual precisam das religiões de massa em que você é uma anônima, mas ao mesmo tempo é alguém.

Os movimentos feministas conseguem chegar a essas mulheres ou ainda falham em compreender o papel que a religião tem na vida delas?

Falham. Algumas vezes, em reuniões com feministas eu disse: Vocês são críticas da religião, eu também. Mas o mundo das periferias é um mundo religioso. Se não é o catolicismo é o neopentecostalismo, o protestantismo, o candomblé, a umbanda, o espiritismo. A cultura nacional é uma cultura de religiões múltiplas. Mas o feminismo, sobretudo um certo feminismo crítico que absorveu as ideias de Marx, Feuerbach e Nietzsche, desconhece os fenômenos das massas e a força da religião. A gente vê na televisão, o pastor enxuga o rosto com toalhinhas e muitas mulheres correm para pegar uma, guardam esse pano, se limpam com ele como se fosse uma relíquia. É uma coisa espantosa de se ver no século 21 e que não pode ser desprezada. Mas também não pode ser tratada só do ponto de vista sociológico: eu tenho que me aproximar daquela mulher que pega a toalhinha e enxuga a cara com ela. O que ela está vivendo? Que emoções essa toalhinha provoca nela? E para isso é preciso que haja pessoas, homens e mulheres, com uma sensibilidade quase artística, poética, que percebam como nesse transfundo religioso existe outro tipo de racionalidade.

Você encontra abertura para levar a teologia feminista até essas mulheres que estão nas igrejas e não atuando nos movimentos?

Nós não temos espaços institucionais. Enquanto fui teóloga da libertação até havia algum, já que a Teologia da Libertação – embora tenha sido combatida pelo papa da época, João Paulo II – teve uma aceitação significativa no seio das autoridades da Igreja por ser bastante clerical. Mas nessa história eu sempre me senti uma minoria porque os homens ocupavam todos ou quase todos os espaços, e nós [mulheres] éramos um pouco a plateia que aplaudia e dava uma opinião de vez em quando. Depois a coisa foi melhorando um pouco, nos abriram alguns espaços, mas, quando quisemos mais, houve conflito. Você não encontra, por exemplo, em nenhuma faculdade católica, um curso sobre teologia feminista. Há alguns anos fui convidada para encerrar um simpósio, e quatro dias antes, já com passagem comprada e texto publicado, suspenderam a minha fala por conta de forças conservadoras que atuam sem a gente saber como – e há muitos grupos de católicos e protestantes ultraconservadores por aí. Seria muito bom se me oferecessem um púlpito em que eu pudesse fazer uma pregação feminista todos os domingos, mas nós temos pouquíssimo espaço público. Em geral, as mulheres do meio popular não sabem o que é teologia feminista e quem se interessa mais são mesmo os movimentos, são as filósofas.

Quais são as raízes dessas forças conservadoras que trabalham para silenciá-las? Elas são fruto de uma total ignorância em relação à produção das teólogas feministas ou são mesmo propositais?

Essa pergunta é muito importante. Não existe uma única causa, elas são múltiplas e há sempre exceções. Atribuo esse rechaço às formas históricas do monoteísmo, que têm cara masculina – dizer a palavra “Deus” já te joga para um universo de poder masculino. É possível que haja mudanças? Na estrutura atual da Igreja Católica, não. Não vão aceitar representatividade feminina. E quando digo feminina também coloco entre aspas, com a crítica de Judith Butler sobre o que é feminino e masculino. O divino que se fez na figura de Jesus era homem, macho, e qualquer tentativa de fazer outra leitura não terá efeito nenhum. Talvez em grupos específicos, mas aí não haverá uma incidência na cultura, que é o que precisa existir.

Mesmo a Igreja tendo, nesse momento, um líder considerado progressista e até revolucionário por alguns?

Ele pode ser progressista do ponto de vista da justiça social, da crítica ao capitalismo, mas é conservador no que se refere à compreensão antropológica do ser humano e à aceitação das reivindicações feministas na sociedade. É conservador também em assuntos de moral sexual, por mais que ele diga coisas como: “Quem sou eu para julgar um homossexual?”. Essa afirmação não prova abertura alguma, porque ele se retira do debate. A pergunta não é essa, a pergunta é qual tratamento vocês têm dado às mulheres que abortam, aos homossexuais, aos transexuais? O que vocês estão acolhendo daquilo que a sociedade humanista, se eu posso assim dizer, tem produzido? Eles não admitem Foucault, por exemplo, Deleuze, Zizek, Judith Butler. O papa diz que não existe uma teologia da mulher. Ele desconhece, por uma ignorância consentida, os estudos e movimentos teológicos feministas da Argentina, de onde ele mesmo veio. Ignora o feminismo como fenômeno sociocultural político e religioso, e é uma ignorância voluntária porque os jornais e revistas não escondem. Por que castigaram a mim e a tantas outras? Porque sabem que nós existimos.

Então é preciso que haja pessoas que denunciem continuamente para não deixar esse poder absoluto ser absoluto. Por isso, cada vez que algum grupo de periferia me convida para falar, eu vou, porque quero ajudar a levantar alguma dúvida na cabeça das mulheres religiosas, pouco a pouco, a partir do lugar em que elas estão. Conheço senhoras, por exemplo, que lavam as roupas dos padres e pastores, a toalha, os paninhos, gastam sabão, energia elétrica, tempo, e não cobram nada por esse trabalho porque o abraço do padre, quando elas entregam a roupa passada, já é uma recompensa – possivelmente porque não recebem nenhum carinho em casa. Temos que continuar desconstruindo, ajudar as pessoas a pensar, ainda mais agora que tiraram filosofia do currículo escolar.

Eu tento desconstruir essa imagem de Deus e provocar as pessoas nesse sentido. É um processo dificílimo porque há séculos se repete a mesma coisa: se ele quiser, vai dar certo, se ele não quiser, não vai. Todo o meu trabalho ainda é uma espécie de beabá para ajudá-las a entender que não podemos tudo, mas que, se nos solidarizarmos uns com os outros, quem sabe não podemos alguma coisa? Tento ajudá-las a se ligar de maneira horizontal com a religião. A tarefa é árdua, mas necessária.

Você vive muitos conflitos sendo uma teóloga feminista, algo que aparentemente é tão paradoxal?



Muitos, mas esses conflitos têm me ajudado a refletir. Diante do sofrimento humano às vezes eu me calo. As inúmeras devoções das pessoas, imagens, velas, mesmo a toalhinha do pastor cheia de suor, me movem as entranhas. Eu gostaria de dizer, espera aí, talvez outras coisas te ajudem mais do que a toalhinha, ou do que gastar seus dez reais para comprar a imagem de um santo. Eu sinto esse conflito dentro de mim, mas percebo que o momento da dor não é concomitante ao momento da racionalidade. E então eu acolho aquilo que as pessoas dizem que precisam: um gole de água benta, deitar a cabeça sobre uma bíblia. A solidariedade àquela dor passa na frente da teoria, da análise crítica e política, mas isso não tira meus conflitos. Quando digo que sou católica, também estou dizendo que não sou de alguns tipos de catolicismos, mas sou de outros. Sou católica por uma tradição, mas também não sou, porque muitas vezes critico essa mesma tradição. Esse ser e não ser se misturam em mim.

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